Eu destravo a porta do passageiro.
A sua porta.
Você entra sorrindo, me cumprimentando.
Não te respondo.
Sorrio para o horizonte.
Acelero.
Você me diz o que aconteceu no metrô: um idoso quase prendeu o braço na porta por descaso dos passageiros.
Sorrio.
Acelero.
Você se cala, respiramos a tensão que eu espalhei pelo ar.
Acelero.
Você silencia, como se eu não estivesse mais lá.
Liga o som.
E é claro que eu havia pensado nisso: já havia escolhido o cd antes mesmo de você entrar no carro.
A música diz coisas que você entende, e você entende que estou ali.
Sabe que fiz de propósito.
Percebe que está tudo calculado e que está sendo vítima de todo um planejamento prévio e, por que não, frio?!
Acelero.
Você nem nota: estamos fora do caminho previsto há algum tempo.
E há um bom tempo não tiro o sorriso doce dos lábios.
Você se percebe parte do plano e está me olhando, tentando achar alguma pista.
Pegamos uma estrada de terra.
"O que há contigo, afinal?"
Hahaha..
Sua voz está cheia de angústia, pobre moleque.
Moleque.
Não passa de uma criança temendo a mãe incompreensível, inconsequente.
Imagino-me uma mãe daquelas que tacam fogo na casa, esquecem dos filhos, quebram tudo..
e caem na real de repente, chorando, abraçando os filhos, salvando-os.
A diferença é que eu não cairia na real tão cedo.
Meus pensamentos me fazem cócegas, a gargalhada é inevitável.
Prevejo a sua aflição.
Estrada de terra.
Hahah..
Nesse ponto, você já está ameaçando puxar o freio de mão, ameaçando me tirar do volante, abrir a porta, se jogar.
Não consigo parar de rir, como você pode ser tão idiota?
Estamos dentro de um carro, em uma estrada de terra consideravelmente plana...
mas estamos a quase 100km/h!!!
Suas ameaças são tão vãs quanto qualquer tentativa de escapar.
Estou no domínio.
Acelero.
Hum..Aí está!!!
Você entende tudo e se vira para mim, gritando, suando.
Eu te olho.
Não olho mais para frente.
Eu te olho.
Sorrindo, te olho.
Você pede, implora, me empurra.
Acelero.
Você entendeu.
A eternidade prometida não é mais um sonho.
Quero você inteiro só para mim.
E tudo está conosco.
Não preciso mais acelerar.
O carro faz a sua parte, o vento nos ajuda, o céu se abre, a estrada acaba, os olhares se tocam, a pele arrepia, os corpos flutuam, as mentes se perdem, o infinito nos abraça.
E eu me lembro em um único flash:
"Vou passar por São Paulo amanhã, querido."
"Olha, é mesmo? ..Demorô, carona!"
Tonto.
Você está devorado.
Coitado.
Não sobrou nem o caroço.
..Pena que não sabe de nada ainda.
Está tudo encaminhado.
Você me espera no lugar combinado.
Acelero, estou chegando!
Você se aproxima do carro.
Chegou a hora.
(repeat all)